APOLOGIA DE BARBIS - (Para uma compreensão da vocação dos irmãos leigos na Ordem Cisterciense)

D. Armand Veilleux, OCSO, Abade de Scourmont na Bélgica

Na conferência de Kalamazoo de 1991, dei uma palestra sobre a questão dos Irmãos Leigos. Várias pessoas me pediram que a publicasse, mas este é um dos vários escritos que nunca publiquei pois não achei tempo para fazer uma correção final do texto e acrescentar todas as notas de rodapé.

Não penso que este texto mereça uma publicação, mas desejo partilhá-lo com aqueles que possam estar interessados em lê-lo, neste ponto da história da Ordem em que a questão emerge de novo. Ouso dedicá-lo ao Irmão Conrad Greenia de Mepkin, que também apresentou uma palestra no mesmo encontro de Kalamazoo. Embora tenhamos opiniões bastante diferentes a respeito do mesmo assunto, tenho grande estima por ele e por suas opiniões e estou convencido de que, com toda sua justiça, ele estará também capacitado a apreciar minhas opiniões.

 

Introdução:

O título deste ensaio requer uma pequena explicação. Reproduz o título de um escrito de Burchard, abade de Bellevaux, escrito num tempo em que os irmãos leigos estavam sob boa dose de ataque. Trata-se, entretanto, de um comentário sutil de todos os possíveis textos da Escritura que falam de cabelo e barbas mais do que um estudo sério da vocação dos irmãos leigos (O contexto da "Apologia" é um tanto humorístico: foi dirigido pelo abade de Bellevaux aos irmãos leigos de sua casa-filha, Rosières, onde o abade ameaçou os irmãos em retirar suas barbas se não ficassem em silêncio!).

O que desejo fazer não é comentar aquele escrito mas simplesmente estudar a evolução que se deu pelos séculos, para a compreensão da vocação do irmão leigo, vendo-a em comparação com o contexto mais amplo da evolução social e econômica das sociedades em que se inserem.

O monaquismo é um fenômeno transcultural, no sentido de que ele não se liga a uma determinada cultura particular e é encontrado em praticamente todas as grandes culturas da história. Mas mesmo se o monaquismo é transcultural, sempre foi vivido dentro do contexto de uma cultura concreta, limitada no tempo e no espaço. Assim, não devemos nos surpreender em descobrir que muitos aspectos da vida monástica, mesmo os mais espirituais, são afetados em sua implementação pelo contexto social, cultural e mesmo econômico no qual se vive. Isto é tanto verdadeiro para a instituição dos irmãos leigos, como para qualquer outra instituição monástica.

Após o Decreto de Unificação, um documento que suprimiu a distinção entre duas categorias em nossas comunidades em 1965, o status de irmãos leigos, embora não suprimido de modo completo na Ordem, foi praticamente votado à extinção. Poucos falam de reinstituir os irmãos leigos como uma categoria distinta, mas deve-se efetuar uma diferença entre a "vocação de irmão leigo" e o "status de irmão leigo", e muitos estão preocupados com preservar ou reinstalar a "vocação de irmão leigo". Esta preocupação foi explicitamente expressa por Dom Ambrose Southey, que foi nosso Abade Geral, em sua última carta circular à Ordem.

Eu próprio tentei por anos compreender o que significava "vocação de irmão leigo", ouvindo várias pessoas que usavam a expressão. E sempre fiquei pouco à vontade com o que ouvi. Entrei na Ordem como monge de coro (e deveria acrescentar, um monge de coro que sempre gostou de todo tipo de trabalho manual), e assim permaneci por vários anos - ou ao menos, assim tentei tornar-me. Ora, tudo o que comumente se menciona como característica da vocação do irmão leigo (tais como simplicidade, humildade, trabalho) é- não ousaria dizer que assim vivo, mas o que aspirei a viver e tento viver. Assim, decidi pesquisar como aquela vocação foi entendida e vivida na Ordem através dos séculos, lendo as fontes disponíveis e os vários estudos publicados sobre a questão nas últimas décadas. Ficou-me evidente que a compreensão da vocação de irmão leigo mudou muito nos últimos nove séculos, e esta mesma compreensão mudou pois a própria realidade mudou. E esta realidade mudou pois a situação sócio-cultural mudou.

Assim, o que pretendo fazer nesta apresentação é considerar a evolução que teve lugar na compreensão da vocação dos irmãos leigos, e ver como ela pode ser explicada, de melhor forma, em grande parte pela transformação social. O Irmão Conrad nos deu uma apresentação da vida dos irmãos leigos nos séculos XII e XIII. Tentarei mostrar como passamos do primeiro ponto para o segundo, e o que aconteceu entre os dois. Para entender esta evolução, devemos voltar na história para um período um pouco anterior ao de Cister, e talvez, possamos ousar fazer algumas projeções para as próximas décadas e possivelmente, para o próximo século.

 

 

 

Antes de Cister

Como sabemos, a questão das origens dos irmãos leigos não é fácil. Não devemos nos surpreender com isto. Teilhard de Chardin, ao falar de um assunto totalmente diferente, muitos anos atrás, nos lembrou que a origem de qualquer coisa não é, nem pode ser o objeto da ciência. A ciência estuda os fenômenos já existentes. Estes fenômenos se tornam o objeto da pesquisa científica desde que existam. O processo através do qual vieram a existir escapa à análise científica. Algo disto também é certamente verdadeiro para a instituição dos irmãos leigos.

Uma coisa fica claro, contudo, e é muito importante: é que a instituição dos irmãos leigos, sob todas as suas formas era, no início, parte de um fenômeno muito maior. Pelo final do século XI e início do século XII, todo mosteiro, mesmo o menor e mais simples tinha uma rede bastante complexa de relacionamentos com a sociedade. Primeiro, nenhum mosteiro poderia ser fundado sem a doação de alguma propriedade por algum proprietário de terras, e sem alguma fonte de renda, que ou era composta por um conjunto de direitos que precisavam ser coletados, ou através da exploração direta da terra, que se complicava pelo fato de que a propriedade do mosteiro consistia com freqüência de várias parcelas de terra, algumas delas bastante distantes do mosteiro.

Assim como qualquer outro proprietário de terras, ou pessoa nobre, um mosteiro tinha uma família, que era composta de pessoas leigas que executavam várias tarefas, quer no mosteiro, ou com mais freqüência, tomavam conta das relações da comunidade monástica com o mundo exterior. Kassius Hallinger (que foi meu professor de História) e que escreveu o que pode ser e ainda é talvez o mais autorizado artigo sobre os primeiros dias da instituição dos irmãos leigos, defende a posição de que estes devem sua origem ao fato de que alguns membros da família foram gradualmente sendo integrados na vida da comunidade. Isto é verdade para os irmãos leigos ou conversi que achamos em Cluny e em outras comunidades beneditinas antes de Cister. São os conversi no estilo antigo, como os denomina Hallinger, distintos dos conversi de estilo novo, que encontramos em Cister e a Charterhouse, e também em Grandmont e nas novas Ordens do século XII.

No século XI, muitos textos falam de monaci conversi e de famuli conversi. Em ambos os casos, conversi é um adjetivo. Os monaci conversi são aqueles convertidos à vida monástica na idade adulta, distintos dos oblati, que tinham sido oferecidos ao mosteiro por seus pais ou que, de qualquer forma, haviam entrado como crianças ou adolescentes. Os famuli conversi eram membros da família (servos, trabalhadores contratados), que foram admitidos a partilhar da vida dos monges no mosteiro, e que mais ou menos era assimilados pelos monges.

No início do século XII , tipos completamente novos de conversi aparecem, com as novas Ordens. Um deles é o encontrado nas Ordens como os Camaldulenses, Valombrosianos e Hirsau. Em Camaldoli, São Romualdo organizou servos leigos em alguma forma de associação após 1012. Pedro Damião fez o mesmo na metade do mesmo século em Fonte Avellana, e João Gualberto idem, em Vallombrosa, dando-lhes o nome de conversi. Na congregação reformada alemã de Hirsau, adquiriram um status religioso ainda mais preciso. Outro tipo, que teria uma história gloriosa, é achado em Cister, e sob uma forma muito semelhante em Charterhouse. Jacques Dubois nos mostrou que não podemos dizer sobre eles, como no esquema de Hallinger, que proviessem da familia. Mas podemos assumir que jamais teriam existido se a familia não existisse primeiro, e se o tipo mais antigo de irmãos leigos não tivesse existido.

Os mosteiros cistercienses tinham, ao lado dos irmãos leigos, e antes de sua instituição, a familia, mencionada em várias Cartas, compostas dos famuli e de trabalhadores contratados (mercenarii). A partir da evidência até aqui disponível, parece que a instituição dos irmãos leigos só surgiu por volta de 1115, cerca de vinte anos após a fundação de Cister, mas bem desde o início era uma instituição sub iuris, e não a incorporação gradual à comunidade de uns poucos membros da familia, que continuava a existir.

 

Os primeiros irmãos leigos cistercienses

A principal característica do novo tipo de conversi que encontramos em Cister e que eles formam uma comunidade. Um escrito muito interessante e também, muito revelador, denominado Dialogus inter cluniacensem et cisterciensem monachum, de Iringus de Aldesbach, por volta de 1180, mostra muito claramente duas comunidades num único mosteiro:

Nos modo habemus infra ambitum monasterii duo monasteria, unum scilicet fratrum alicorum et aliud clericorum.

Parece-me importante sublinhar tal fato para analisá-lo depois. No mosteiro cisterciense do século XII, não encontramos uma comunidade composta de duas categorias de membros. Achamos, sim, duas comunidades, autônomas em muitos aspectos, vivendo em profunda comunhão e fraternidade, sob a autoridade do mesmo abade. Como sabemos, grande número de conversi vivam grande parte do tempo nas granjas, mas alguns viviam no próprio mosteiro, e os primeiros normalmente voltavam ao mosteiro para a liturgia do Domingo. A arquitetura do mosteiro revela claramente esta peculiaridade da instituição cisterciense. Em muitos aspectos, a arquitetura não difere daquela de uma comunidade beneditina da mesma época; mas, se a observarmos mais de perto, vemos imediatamente que se trata de dois mosteiros num só. Os irmãos tinham seus próprios quartos, e havia uma alameda especial que ia diretamente de seus quartos para a igreja, onde ocupavam um lugar especial.

Nossa mentalidade moderna facilmente se choca com a presença de duas comunidades distintas num mesmo mosteiro, e assim, em geral não tentamos considerar este aspecto. Mas, como veremos depois, isto pode ser encarado de um modo extraordinariamente positivo.

E agora a questão é obviamente: Por que Cister instituiu os irmãos leigos? Uma explicação é dada no texto do Exordium Parvum, bastante citada e conhecida:

"Uma vez que compreenderam que sem sua ajuda seriam incapazes de observar perfeitamente os preceitos da Regra dia e noite, decidiram admitir, com a permissão de seus bispos, homens barbados como conversi, e tratá-los em vida e na morte como seus próprios, exceto monacatu."

Se se fizer uma leitura superficial deste texto, diz-se muito que os irmãos leigos de Cister foram instituídos porque os monges sentiam que não poderiam cumprir todas as obrigações da Regra, especialmente o Ofício Divino e ainda fazer todo o trabalho necessário para sua subsistência. Esta é uma leitura enviesada do texto. O problema não era a quantidade de trabalho, nem o tempo disponível para fazê-lo após recitar todo o Ofício Divino. De fato, os monges de coro de Cister trabalhavam, e trabalhavam duro. Construíram seu primeiro mosteiro, quando os irmãos leigos sequer existiam, e é provável que a maior parte das construções em todas as primeiras fundações tenha sido erguida por monges de coro. Os irmãos eram necessários para alguma forma específica de trabalho - aquele que tinha de ser feito fora do mosteiro, nas granjas ou nas propriedades bastante distantes que, portanto, não permitiam aos irmãos retornar ao mosteiro toda noite, sem falar em todo o Ofício. Isto de fato está claramente enunciado no Exordium Parvum.

Os irmãos leigos não foram instituídos simplesmente para se ter uma força de trabalho. Se este tivesse sido o problema, poderia ser solucionado facilmente com trabalhadores contratados. Sabemos que de fato os cistercienses tinham trabalhadores assalariados e famuli, e que tinham-nos mesmo antes e após a instituição dos irmãos leigos. São mencionados no próprio Exordium Parvum, e em muitos estatutos do Capítulo Geral, durante o século XII e depois. Aqui estão apenas alguns exemplos:

- o Capítulo Geral de 1157 prescrevia que as horas de trabalho dos assalariados empregados dentro do claustro deveriam ser dispostas de modo a se adequar ao horário monástico;

- o Capítulo Geral de 1164 menciona um acordo com os Gilbertinos de não se assalariar os empregados do outro e vice-versa...

- o Capítulo Geral de 1195 prescreve que parentes de monges ou conversi não deveriam ser contratados.

Os irmãos leigos tornaram-se necessários devido a uma importante escolha feita pelos cistercienses quanto à sua forma de subsistência. A partir do século IX, a propriedade monástica havia crescido enormemente. Os primeiros mosteiros medievais, incluindo Cluny, tiravam sua subsistência de propriedades que lhes haviam sido dadas por ricos e nobres proprietários de terra. Adotaram o sistema da casa senhorial feudal (manorialism no original inglês)e atribuíram o trabalho agrícola à população rural. Isto, de fato, gradualmente envolvia os mosteiros em assuntos políticos mundanos. Por gerações tornou-se normal para as comunidades monásticas viver das rendas das propriedades trabalhadas por servos e por taxas e outras rendas ligadas à posse de títulos.

Além disto, Cister surgiu num momento em que o sistema feudal patriarcal havia chegado a um impasse. As propriedades na Europa eram divididas em parcelas cada vez menores, de acordo com as leis e costumes de herança. Havia cada vez menos pedaços grandes de terra, e aquelas que eram dadas aos monges para sua subsistência, não eram mais grandes extensões de terra cultivável, como haviam sido no passado, mas sim, alguns pedaços pequenos, praticamente caminhos, disseminados por uma região. Os mosteiros que recebiam tais propriedades tornavam-se, como proprietários de terras, parte do sistema feudal.

Cister, de acordo com o movimento geral de retorno à pobreza, tomou a decisão muito importante de rejeitar qualquer tipo de renda desta espécie e ganhar sua vida a partir de seu próprio trabalho. Rejeitou "igrejas, rendas de altar, taxas de enterro, taxas do trabalho de outros, de servos, de aldeões, taxas de terra, rendas do forno e de moinhos e outras coisas semelhantes contrárias à pureza monástica..." Desejaram "viver do fruto de seu próprio trabalho manual", da labuta sobre sua própria terra. Para cuidar da administração direta de suas propriedades, muitas delas fora da clausura, Cister precisava de irmãos que pudessem não só estar isentos das obrigações estritamente monásticas, mas que não estariam também ligados às obrigações canônicas às quais qualquer clérigo estava ligado.

Os irmãos eram necessários antes de tudo para a administração das propriedades distantes, as granjas. Para o trabalho do próprio mosteiro, mesmo o de fazendo, este era feito por todos. O "Diálogo" anteriormente citado menciona: "Fazemos trabalho agrícola... todos juntos, nós e nossos irmãos e nossos servos contratados... e vivemos dos frutos daquele trabalho..."

Assim, não estamos na presença de uma classe de monges que dedicam todo seu tempo à oração e à lectio divina e uma classe de irmãos que faz o trabalho manual. Estamos na presença de uma divisão de funções que corresponde à estrutura social do século XII, e a uma relação particular entre as ordens clerical e leiga. Isto ilumina outro aspecto da questão. Tem sido dito que em Cister os monges de coro pertenciam às classes mais altas da sociedade, enquanto os irmãos pertenciam às mais baixas. Isto não parece ter sido completamente verdadeiro, ao menos não no início. Entre os monges havia pessoas de todas as classes sociais, incluindo escravos libertados, mas é verdade que a maioria dos irmãos leigos tenha vindo, em sua maior parte, da classe dos illiterati. Há poucos casos de nobres que escolheram ser irmãos leigos por humildade, mas isto parece ter sido excepcional, uma vez que tais exemplos eram vistos como muito edificantes, e por várias razões o Capítulo Geral de 1188 disse aos nobres que eles seriam muito mais úteis à Ordem como monges. Mas "a falta de letras" dos irmãos leigos não deve ser exagerada. Muitos deles tinham papel muito importante na administração material dos mosteiros, eram granjeiros, negociavam contratos importantes. Freqüentemente são mencionados como testemunhas nas Cartas (30 vezes entre 1163 e 1182 em Cister).

Não deveríamos falar tanto de classes mas sim, de "ordens". As "ordens" eram muito mais importantes para as pessoas na Idade Média do que o são nos dias de hoje. Naquela época uma profunda transformação social estava ocorrendo, que certamente influenciou o rápido desenvolvimento da instituição dos irmãos leigos e a compreensão de seu papel.

Na Igreja, por vários séculos, uma distinção entre os vários estados de vida ou ordines fidelium se tornou clássica: os clerici, os monaci, e os laici. Estas ordens eram distintas uma da outra por sua relação com a cristianização da sociedade. Uma vez que a sociedade era, ao menos idealmente convertida, outro esquema surgiu, aquele dos oratores, os bellatores e os laboratores. Assim, dentro de cada novo ordo, dois sub-grupos surgiram, um no qual a função temporal recebia uma consagração espiritual, e outro, no qual as funções sociais continuavam a ser exercidas apenas no nível temporal. Os bellatores eram os primeiros a receber a consagração espiritual, através dos rituais de cavalaria e depois, com a bênção dos integrantes das cruzadas e a fundação da Ordem dos Cavaleiros. A próxima ordem a receber a consagração espiritual foi a dos laboratores. É isto que a instituição dos irmãos leigos realmente fez.

Tem sido também dito às vezes que os irmãos leigos eram necessários em Cister pois os monges tinham se clericalizado e, portanto, não poderiam trabalhar ou não desejavam fazê-lo. Como vimos antes, os monges não temiam o trabalho e trabalhavam manualmente. Mas é fato que, pelo fim do século XI, todos os monges eram clérigos, embora relativamente poucos fossem sacerdotes. Todos recebiam a tonsura quando introduzidos na ordem clerical. O monaquismo, que originalmente se iniciou como um movimento leigo, muito relutante de permitir que qualquer clérigo se juntasse às suas fileiras, iniciou, entretanto, muito precocemente, um longo processo de clericalização. Por algum tipo estranho de volução, que não estudaremos aqui, o monaquismo se tornou reservado aos clérigos. Cluny ainda tinha alguns poucos monaci laici. Mas em Cister, desde o seu início, todos os monges eram clérigos.

Aqui, entretanto, deve-se ser cuidadoso. Não devemos transpor nossa moderna noção de clericalismo para o passado. Havia duas ordens na Igreja: a clerical e a leiga. A primeira era, de fato, considerada superior à segunda, mas cada uma tinha seus próprios direitos e obrigações; cada uma tinha um papel a desempenhar e sua própria dignidade. O exercício da justiça, a administração do mundo temporal, isto era reservado aos leigos.

Com nossa mentalidade moderna e nossos enviesamentos também, a instituição dos irmãos leigos pelos primeiros Cistercienses poderia ser vista como um modo pelo qual os monges, que eram clérigos, se proviam de servos leigos. Mas isto pode também ser visto sob outro ângulo. Ao tempo em que a vida monástica era praticamente reservada aos clérigos, ou se se prefere, quando todos os monges eram feitos clérigos, a instituição dos irmãos leigos por Cister, tornou a vida monástica acessível de novo aos leigos. Do ponto de vista estritamente canônico, os irmãos leigos não eram monges; num sentido mais profundo, eram monges, monges aos quais se permitia viver a vida monástica enquanto realizavam tarefas próprias de leigos, isto é, a administração da propriedade e todas as relações em que a administração civil, em todos os níveis, comportava. A presença de duas comunidades dentro do mosteiro cisterciense não chocaria os homens do século XII. Ao contrário, era um novo reconhecimento do caráter e dignidade específicas do laicato.

Isto parece ter sido a intuição original dos fundadores de Cister. Como sabemos, foi um sucesso extraordinário, embora muitos dos números que retratam a população de irmãos leigos nos mosteiros do século XII devam ser vistos com cautela. De qualquer modo, é fato que o grande e rápido desenvolvimento da Ordem Cisterciense no século XII se deveu em grande parte a este equilíbrio muito especial e delicado de duas comunidades numa única, cada uma com um papel específico, e, ao menos por um tempo, vivendo em perfeita harmonia.

 

 

 

Os anos de trevas

A idade de ouro da instituição dos irmãos leigos foi curta. Já desde o último quartel do século XII, houve muito problema na Ordem (cf. James S. Donnelly, "The Decline of the Medieval Cistercian Laybrotherhood", NY 1949). O Capítulo Geral cada vez mais tinha de se ocupar com freqüentes revoltas de irmãos leigos de várias casas, e as decisões dele, assim como as cartas de Visitação (mesmo dos Visitadores que cuidavam dos irmãos leigos) eram cada vez mais negativas contra eles ("contra Conversos"). A partir do século XIII, seu número decresceu rapidamente, e tornaram-se praticamente extintos, não só na Ordem de Cister, com a exceção de poucas casas como La Trappe e Sept Fons, mas em todas as outras Ordens que tinham adotado uma instituição semelhante.

Na história, as idades de ouro são sempre muito curtas. Antes de tal idade de ouro, existe um período de tensão, de busca e de experimentação, e de confusão. Aqueles períodos de tensão são muito criativos e produtivos. Depois surge subitamente um período de grande harmonia no qual as tensões temporariamente cessam e grande beleza emerge. A história parece estar prendendo sua respiração! Grandes produções surgem, arte gótica, arte cisterciense... O triste é que aqueles períodos são sempre curtos. Depois começa um período de desintegração que conduz eventualmente a novo período de tensão e muito depois a nova idade de ouro de outro tipo. A graça, e talvez, a maldição de Cister foi não só ter nascido em tal idade de ouro, mas ser um de seus mais belos frutos.

A fundação de Cister foi parte de um movimento em direção à maior simplicidade e pobreza, mas pelo fim de seu primeiro século de existência, Cister era extremamente rica. Pode-se dizer que esta foi a razão da decadência e da rápida dissolução das grandes e belas comunidades de irmãos leigos. Embora possa aí haver boa dose de verdade, esta análise corre o risco de ser simplista.

De fato, a fábrica social mudara rapidamente durante o século XII e a situação muito especial que tornou a instituição dos irmãos leigos florescente foi rapidamente desaparecendo. Ao tempo da fundação de Cister, a desintegração do sistema manorial (feudal) já tinha começado. Uma população crescente não poderia mais ser absorvida por unidades agrárias estáticas e antiquadas. O equilíbrio rompido colocou uma quantidade considerável de camponeses dependentes em movimento, buscando uma vida melhor e emprego promissor. Tais condições levaram dezenas de milhares aos exércitos das Cruzadas, e milhares para os mosteiros, mas também empurraram outros para as prósperas cidades em crescimento, e forneceram as massas para ir na direção ao leste. Pelo fim do século XIII, a servidão havia praticamente desaparecido da Europa Ocidental. Os camponeses eram proprietários livres, cuja propriedade rapidamente aumentou através do cultivo intensivo e a venda de produtos agrícolas nas cidades que cresciam. O sistema de granjas de Cister e as instituições de irmãos leigos tinham sido uma alternativa para algo que estava desaparecendo. E esta, de fato, gradualmente desapareceu. As grandes fazendas dos cistercienses eram vistas pela sociedade como competição e ameaça.

Estes desenvolvimentos sociais foram acompanhados por inquietação social e revoltas de camponeses. No mesmo período, os Estatutos dos Capítulos Gerais mostravam revoltas semelhantes em vários mosteiros. E, finalmente, Cister começou a recorrer gradualmente ào arrendamento da terra mais do que ao seu cultivo direto.

Outro aspecto foi que, durante as primeiras gerações iniciais, o número de irmãos leigos era limitado e correspondia às necessidades das comunidades. Não eram uma massa informe de trabalhadores. Muitos deles tinham importante responsabilidade na administração dos domínios da comunidade. Eram chefes de granjas, negociavam e assinavam importantes contratos em nome da comunidade. Eram mensageiros dos abades. Alguns chegaram mesmo a serem usados como bullatores pelos papas. Nas granjas, durante os períodos de trabalho mais pesado, como colheita e aradura, usavam trabalhadores assalariados. Quando o número de irmãos leigos aumentou rapidamente - em parte devido às condições sociais (e este também foi o que aconteceu com os monges), tornaram-se grandes massas de trabalhadores anônimos, muitos dos quais provavelmente sem nenhuma vocação espiritual real, e assim, fácil presa de descontentamento, murmuração e revolta. Sentiam-se explorados.

Isto pode ter se devido a uma falha na instituição original cisterciense dos irmãos leigos, embora possa ter sido muito bela. Antes de Cister, os irmãos leigos eram os oficiais da familia que eram admitidos a viver dentro da comunidade. Em Cister, eram os trabalhadores leigos admitidos a formar uma comunidade dentro do claustro do mosteiro, sob a autoridade do mesmo abade, enquanto trabalhavam a maior parte do tempo fora do claustro. Eram essencialmente trabalhadores que tinham a responsabilidade do domínio material do mosteiro. Gradualmente, foram considerados pelos monges apenas como trabalhadores. E assim eles próprios acabaram se considerando simples trabalhadores a serviço e reclamando seus direitos como qualquer outro trabalhador decente o faria.

Era uma grande instituição, mas que correspondia à relação entre os estados clerical e laical, entre as ordens espiritual e material, que rapidamente estava em transformação. Com a Reforma Gregoriana, a Igreja clamou muito por sua autonomia, e agora a ordem social, como um todo, clamava por sua própria autonomia. A instituição dos irmãos leigos estava muito ligada a uma organização social específica para ser capaz de sobreviver à mesma. Um dos últimos golpes foi o demográfico: a peste negra matou um terço da população européia em 3 anos (entre 1347 e 1350), a ela se seguindo outras epidemias e guerras, que diminuíram consideravelmente a fonte de onde partiam tanto as vocações para irmãos leigos quanto para os monges de coro.

Embora um bom número de homens e mulheres santos e humildes continuassem a entrar para os mosteiros nos século XV, XVI e XVII devido a uma forte vocação pessoal ou por outras razões pessoais, o sistema das duas comunidades, uma ao serviço da outra dentro do mesmo claustro era muito estranha para a mentalidade do Renascimento e Iluminismo para atrair mais do que algumas poucas pessoas altamente motivadas.

A evolução nos séculos XIX e XX

Houve um reavivamento da instituição dos irmãos leigos no século XIX, tanto na Ordem Beneditina quanto na Cisterciense, mas como mostra Hallinger, os irmãos leigos dos séculos XIX e XX são de uma espécie muito diferente dos do século XII, a despeito de semelhanças aparentes. Num mosteiro cisterciense do século XII, havia duas comunidades, bem articuladas, unidas na caridade, vivendo os mesmos valores espirituais, mas cumprindo funções diferentes, e permanecendo duas comunidades, grandemente autônomas, embora uma subordinada à outra. Nos mosteiros dos séculos XIX e XX, até o Decreto de Unificação, havia uma única comunidade composta de duas categorias ou de duas classes. Isto constitui uma diferença bastante radical.

Este reavivamento fazia parte da reforma monástica do século XIX, que em grande extensão era um esforço nostálgico de retornar ao ideal da Cristandade. Era normal para um mosteiro cisterciense ou beneditino do século XIX e início do século XX ter um grande número de vocações de irmãos leigos. Era o retorno à uma visão muito semelhante à do século XII: uma comunidade de monges consagrada ao serviço de Deus, especialmente o Ofício Divino, e um grupo de irmãos leigos, humilde e generosamente dedicados às tarefas manuais e administrativas, de tal modo a permitir que os monges de coro pudessem realizar suas funções espirituais. Mas havia uma enorme diferença entre a nova e a antiga situação, a despeito das aparências semelhantes. Os irmãos agora estavam muito mais integrados à vida da comunidade do que o eram no passado. Embora formassem um subgrupo bastante forte na comunidade, com seu próprio mestre, havia uma única comunidade composta de monges de coro e de irmãos leigos. Isto, em muitos aspectos, constituía um progresso, mas tinha também um lado negativo: que uma comunidade era composta de duas classes ou duas categorias, uma subordinada à outra e sem ter os mesmos direitos que a outra.

Centenas de homens e mulheres santos escolheram voluntariamente esta condição humilde de serviço e se santificaram belamente nela. A situação era muito diferente de uma parte do mundo a outra. No Velho Mundo, ainda sensível à divisão de classe da sociedade, muitos dos irmãos leigos eram pessoas que por várias razões não estudaram, e assim tinham muito menos educação formal do que os monges de coro. Na América, isto era muito diferente. Muitos dos irmãos leigos tinham graus secundários ou universitários e simplesmente desejavam uma vida monástica simples de oração, serviço e penitência.

Tal situação era um passo à frente, de modo realista, ao que os primeiros cistercienses havia feito. Eles haviam constituído uma comunidade de trabalhadores leigos que com eles viviam como irmãos dentro do mesmo claustro, embora não fossem monges. Num tempo em que ser monge significava ser parte da ordem clerical, de novo tinham permitido leigos a viver o modo de vida monástico, como eles e com eles. Fazê-los parte da mesma comunidade era um passo à frente, mesmo se aquela comunidade estivesse dividida em duas categorias com direitos diferentes. O próximo passo lógico era criar uma nova situação na qual a comunidade não seria nem clerical, nem leiga, mas simplesmente monástica, como nos primeiros séculos do monaquismo, e na qual a diversidade de funções não conduziria a uma distinção de classes ou categorias. Este foi o passo que a Ordem Cisterciense da Estrita Observância fez no início dos anos de 60 no século XX, considerando que isto estava totalmente em continuidade com o movimento que se iniciara com os cistercienses do século XII, enquanto correspondia a uma nova sensibilidade social e eclesial (para não mencionar que isto foi tão bem feito quanto possível e os direitos de cada um, respeitados da mesma forma, mas isto é uma outra questão). E nem se pode dizer que a evolução tenha acabado.

Direções para o futuro

A história não volta atrás. O que é passado, é passado. Penso que qualquer tentativa de desfazer o que foi feito em 1965 seria fútil. Precisamos ser criativos enquanto permanecemos em contato com nosso passado, não com um segmento congelado de nosso passado, mas este visto como um todo e em toda a sua dinâmica. Não penso que a preservação da vocação de irmão leigo consistirá em reestabelecer duas categorias ou várias categorias dentro de nossas comunidades. Deveria consistir em duas direções.

Uma delas é a linha do pluralismo iniciada pelo próprio Decreto da Unificação. Um Estatuto sobre a Unidade e o Pluralismo votada pelo Capítulo geral de 1969 permitiu a cada comunidade achar sua própria identidade, sua própria maneira de realizar concretamente os mesmos valores cistercienses e a mesma observância básica cisterciense comumente aceita. Várias comunidades de nossa Ordem, especialmente nas Novas Igrejas, mas não somente lá, correspondem muito mais a uma comunidade de irmãos leigos do que a uma comunidade de monges de coro, se usamos as categorias do passado. Assim, nossas novas Constituições votadas em 1984 estabeleceram a possibilidade de uma boa dose de pluralismo dentro da comunidade que permitiu a presença dentro de cada uma delas não de várias categorias ou classes, mas de uma grande diversidade entre indivíduos em termos de realização concreta do equilíbrio entre trabalho, oração comum e oração particular. E devemos enfatizar que na realidade a Ordem desenvolveu nos últimos 25 anos um novo tipo de monges. O modo de vida do monge de coro do passado mudou tanto quanto o do irmão leigo do passado.

A outra linha de evolução, que penso ser rica de promessas para o futuro, tem a ver com a relação da comunidade monástica com a comunidade cristã maior. Mencionei no início que cada mosteiro no século XII era parte de uma complexa rede de relacionamentos com a sociedade em torno, e que os mosteiros cistercienses, como outros mosteiros, tinham uma familia composta de leigos que serviam ou auxiliavam a comunidade de várias maneiras. Próximo aos irmãos leigos, de acordo com o próprio Exordium Parvum, havia os familiarii, e mesmo os Cistercienses não poderiam passar sem trabalhadores contratados.

Hoje em dia, um fenômeno bastante generalizado no mundo monástico, assim como no mundo religioso em geral, é achar-se muitos leigos que se sentem chamados a uma vida de oração e a uma mais completa dedicação a Deus. Não se sentem chamados a abandonar sua família, seu emprego e suas responsabilidades na sociedade. Mas sentem-se chamados a uma vida mais profunda de oração e de comunhão, e sentem a necessidade de formar pequenas comunidades com outros leigos. Frequentemente acham suporte e alimento para sua vida espiritual numa relação íntima com uma comunidade monástica. Reconhecem-se a si mesmos, espiritualmente, como cistercienses, beneditinos ou carmelitas. Dezenas de nossos Mosteiros tem tais grupos de leigos que são reconhecidos como Oblatos ou Associados da comuniadde. Há também um grande número de pessoas que, após uma aposentadoria precoce, gostaria de oferecer sua experiência ou seu trabalho a uma comunidade ou pertencer de algum modo àquela comunidade ao mesmo tempo em que permanecem no mundo.

Os primeiros cistercienses foram muito criativos em abrir a vida monástica de novo aos leigos. Gostaria de sugerir que este desafio oferecido à Ordem Cisterciense nos nossos dias, numa linha de continuidade com aquela intuição original, seria de achar maneiras de abrir não só a riqueza da espiritualidade cisterciense mas também a participação na comunhão cisterciense de um laicato pós Vaticano II e cada vez mais consciente de sua dignidade de leigos e de sua vocação a encarnar o ideal contemplativo no mundo de hoje.

Após séculos de consideração do papel do laicato exclusivamente como servidor do clero, o papel importante e insubstituível do mesmo na sociedade e na Igreja é agora enfatizado. O documento sobre o tema do sínodo, de João Paulo II, enfatiza a importância da criação de comunidades de leigos. Nesta linha, uma solução fiel à intuição original dos irmãos leigos seria não exatamente de criar uma forma de Programa de Oblatos de modo a que os indivíduos fossem oblatos externos da comunidade, mas encorajar a formação de comunidades autônomas de leigos que adaptaria o ideal cisterciense de oração contemplativa e busca de Deus nas condições da vida secular, e estabelecer laços íntimos com tais comunidades. Do mesmo modo como a instituição dos irmãos leigos no século XII contribuiu grandemente para o crescimento rápido da Ordem, também a abertura das comunidades cistercienses a comunidades-irmãs de leigos que desejem beber do poço cisterciense e dar uma nova expressão à sua espiritualidade no mundo de hoje, poderia marcar o início de uma nova e profunda renovação.

© Armand Veilleux, Abadia Notre Dame de Scourmont, Forges, Bélgica

Traduziu: Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil para o Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, 1999.